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A megalomania pernambucana (artigo)

“Não diga que é pernambucano. Não se deve humilhar ninguém, meu filho”

Pela primeira vez na história do jornalismo, o maior repórter em linha reta da revista
mais arrojada da Rua do Veiga investiga as origens da megalomania local

André Duarte* 

O Recife já não tem mais o maior shopping nem a mais longa avenida em linha reta da América Latina, Caruaru pode perder o posto de maior feira ao ar livre para uma concorrente do Equador e o Galo da Madrugada tem um bloco no Rio de Janeiro no seu encalço, querendo rifá-lo do Guinness Book. Mas quem se importa com isso em Pernambuco, uma terra superlativa, onde o “maior”, o “melhor” ou o “primeiro” parecem preceder qualquer coisa, mesmo que ela não seja positiva?

Aurora (www.diariodepernambuco.com.br/aurora), publicada pelo jornal mais antigo em circulação da América Latina, se debruça sobre o assunto e tenta explicar esse traço adjetivado do DNA pernambucano. Sobram teses e histórias bem-humoradas, mas os diagnósticos são variados: mania de grandeza, bairrismo, ufanismo, soberba, megalomania ou orgulho. O fato é que o Leão do Norte, imortal como o seu hino, atracou de nariz ainda mais empinado no século 21, como um navio feito de madeira que cupim não rói ancorando no Porto de Suape. O “boom” econômico finalmente chegou depois de uma decadência que desafiou os brios mais armoriais.

Mas é como se os 381 anos que nos separam da chegada das primeiras embarcações da invasão holandesa, em 1630, nunca tivessem existido. Pesquisador e chefe do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Marcos Galindo explica que o talento do pernambucano para maximizar sua própria história remonta ao período da Proclamação da República, em 1889. “A gente teve que criar uma nobreza que não tinha (com a saída na monarquia portuguesa). E onde fomos buscar? Na história do Brasil holandês. Maurício de Nassau era um príncipe gentil, que trouxe pintores, poetas e construiu uma cidade”, avalia, ressaltando que a outra imagem do conde, a de tarefeiro da Companhia das Índias Ocidentais, foi colocada em segundo plano para não comprometer a montagem de uma identidade ainda verde.

Segundo o pesquisador, isso só foi possível depois que o professor, político e historiador José Hygino Duarte Pereira (1847-1901) viajou à Holanda, em 1885, para garimpar toda a papelada histórica. “O que os historiadores fizeram foi pegar esse fato histórico e criar uma situação que era produtiva para a identidade do Brasil que se construía”. Depois de transferir para a academia um assunto que só se falava em rodas de amigos, Marcos Galindo dividiu o estilo pernambucano de autopromoção em três expressões distintas: ufanismo, fanfarronice e megalomania:

“Ufanismo tem uma função social superimportante de autoafirmação e de construção da identidade. Quem está embaixo quer ir para cima. E no discurso só se consegue isso levantando seu moral e dizendo que tudo o que você faz é o maior ou melhor. É quando você diz, por exemplo, que a música de Chico Science é a melhor do mundo”.

“Fanfarronice é quando a gente diz que o Recife é o lugar onde os rios Capibaribe e Beberibe se juntam pra formar o Oceano Atlântico. Essa é uma ideia sofismática, que tem uma base lógica. Mas é uma lógica que é  feita para causar uma resposta que não é verdadeira. É uma mentira”.

“Megalomania é quando você quer ser maior do que você é. O cara faz acreditando que é verdadeiro. É quando alguém diz que a Avenida Caxangá é a maior em linha reta do mundo. É algo patológico, que a gente cria. É uma macaquice que a gente utiliza pra rir da gente mesmo”.

O escritor e assessor de documentação da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) Paulo Gustavo conta a história de uma senhora de engenho que manda o filho estudar na Europa e pede pra que ele não diga a ninguém que é de Pernambuco. O filho não entende o pedido. Ela justifica: “Não se deve humilhar ninguém, meu filho”. Paulo classifica esse hábito local como uma marca do nativismo. “É como se fosse um fator de compensação por essa perda de prestígio pela qual o estado passou” avaliou, falando do declínio do setor sucroalcooleiro, que até a primeira metade do século passado encabeçava o status quo.

Entre idas e vindas dos Estados Unidos, onde morou, a cineasta pernambucana Luci Alcântara notou uma mudança drástica na autoestima do estado. “Na década de 1980, era aquela autoestima baixíssima. Quando eu voltei, já na metade dos anos 1990, era outra coisa. Todo mundo só queria ser as pregas de Odete”, brinca, usando um termo comum à época. Ainda em solo norte-americano, ela tremia de frio no inverno rigoroso de Chicago quando teve a ideia de fazer um filme sobre as exaltações maiúsculas dos seus conterrâneos.

Na ocasião, Luci acompanhava uma exposição do marido quando uma mulher elogiou uma tela com a paisagem de Pernambuco. “Eu já estava bêbada e disse a ela que o Recife era tão bom que tinha um chef de cozinha, um designer, um fotógrafo e um estilista em cada esquina. Aí ela ficou surpresa e disse que Paris era assim também. Foi quando eu falei que o Recife era muito melhor porque Paris não tem carnaval”.

Nascia O melhor documentário do mundo, um ‘documédia’ (mistura de documentário com comédia). O filme, todo entrecortado por depoimentos de músicos, escritores, artistas plásticos e intelectuais, tem como matéria-prima “a greia”, segundo a mentora, uma das nossas principais armas. A cineasta conta que o nome do projeto surgiu durante a pesquisa de roteiro, quando reuniu as cinco palavras que mais precedem os elogios: o primeiro, o único, o mais, o maior e o melhor. 

O documédia está 90%” pronto e a cineasta aguarda aprovação de editais de financiamento para finalizar o material. “Teve gente que disse que a pangeia (espécie de grande continente, que se fragmentou há milhões de anos, dando origem à América do Sul, África, Austrália e Índia) começou na Padaria Pangea, que tinha no Pina”. Alceu Valença, melhor cantor nascido em São Bento do Una, e o pintor João Câmara, que segundo suas próprias palavras só não é o maior do mundo porque nasceu na Paraíba, entraram na brincadeira e gravaram depoimentos. “O orgulho de todos os entrevistados é o mesmo, independentemente da classe social, nível educacional ou se é um artista de vanguarda ou tradicional. Na verdade, quando tocamos nesse assunto, o bom  humor vem à tona. A gente não leva isso muito a sério”.

O apresentador e produtor cultural Roger de Renor costuma dizer que “Recife é a maior cidade pequena do mundo”. “Recife tem tudo de ruim que uma cidade grande tem, como os engarrafamentos e os shoppings, mas por outro lado tem aquele provincianismo de cadeira na calçada, de todo mundo se conhecer porque Fulano estudou com Sicrano ou é casado com Beltrano”.

Roger tem uma definição na ponta da língua para o fenômeno: “É a egolombra”. Até que leva na gozação, mas reclama quando o recurso é usado de forma exagerada, sem autocrítica. “O que fica de legal é o bom humor, desde que ele leve a uma discussão”. Cita como exemplo o Galo da Madrugada. “O fato de ser o maior bloco de carnaval do mundo não representa nada. Gostaria que fosse o melhor, e não o maior. Ali não cabe nem 1 milhão de pessoas. Qualquer carnaval desses eu vou lá numa esquina pra contar um por um. É o jeito”.

Brincadeiras à parte, os bons ventos na nova economia de Pernambuco, que vieram a reboque dos investimentos do Porto de Suape, só colocaram mais lenha numa espécie de fogueira das vaidades. O consultor de empresas Francisco Cunha, diretor da TGI e coautor do livro Pernambuco afortunado (Editora INTG), alerta que, ao mesmo tempo em que os pernambucanos supervalorizam a sua terra, o estado ainda sofre de uma estranha “vergonha” de fazer propaganda aos vizinhos. “É contraditório. Na verdade, é uma soberba”, diz.

Cunha busca explicação para tal comportamento no apogeu da década de 1950, sucedido por uma franca decadência “econômica, política e cultural” que durou até meados de 1990. Os sintomas ele costuma chamar de “ciclotimia” (segundo o Aurélio, “predisposição a mostrar alternâncias de comportamento que ora é de depressão, ora de excitação”).

Nas palestras que concede a empresários e gente que move a engrenagem local, o consultor deixa claro que Pernambuco precisa de um divã. “Antes vivíamos numa redoma e agora estamos diante de um mundo globalizado. Se essa soberba continuar, as empresas de Pernambuco vão quebrar porque não saberão se atualizar. É uma contradição danosa. É aquela coisa: eu sou bom e os outros é que têm que achar isso”, critica Francisco Cunha.

A tese do ufanismo nacional encontrou sua primeira ressonância há pouco mais de um século, quando o escritor Afonso Celso escreveu Porque me ufano do meu país. Vários trechos tecem generosas loas ao Brasil. Uma apologia em forma de livro, que também repercutiu no Nordeste. “Somos uma grande nação. Ampla porção do mundo nos pertence. Formamos um conjunto solidário do qual nada perdemos, há quatrocentos anos, apesar de poderosos governos terem tentado, por vezes repetidas, arrancar-lhe pedaços”, aponta o autor.

Admirador do livro, Marcos Galindo defende o ufanismo com unhas e dentes. “Imagine se a gente só destacasse o que temos de ruim. Isso não poderia mascarar o que temos de bom? O ufanismo é um fenômeno social humano. Não é uma coisa ligada só ao povo pernambucano. Os norte-americanos são a prova dessa forma de ufanismo. Tudo pra eles é maior e melhor”.

O escritor Paulo Gustavo arremata: “A gente diz que a pátria nasceu em Jaboatão dos Guararapes, onde aconteceu a Batalha dos Guararapes, mas se você for ao Museu do Ipiranga, em São Paulo, eles falam a mesma coisa. Isso sem falar do baianismo. Mas todo excesso nunca é bom”. A cineasta Luci Alcântara aposta num meio-termo. “Ufanismo é muito feio. Quando é megalomania fica uma coisa mais jocosa, mais engraçada”.

Já Roger de Renor vai no caminho inverso: “Até nas coisas ruins tem disso aqui. Dizem que o Aníbal  Bruno é a maior penitenciária da América Latina e que o Recife é a cidade com mais ataques de tubarão no mundo. Tem até campanha de supermercado que diz ter orgulho de ser nordestino. Parece aquela coisa: ‘Vivo na merda, mas sou feliz’”. Enquanto toma o tradicional chá das 5 da tarde e saboreia uma fatia de bolo de rolo com seus colegas imortais, o presidente da Academia Brasileira de Letras (ABL), Marcos Vilaça, costuma fazer uma “pequena-grande” correção sobre a tal mania de grandeza do Pernambucano: “Não temos essa mania. O que temos é a grandeza mesmo”.

Ranking da Megalomania

Recife já teve o MAIOR SHOPPING da América Latina em área construída, mas o empreendimento agora está na sétima posição no país, segundo dados da Associação Brasileira de Shopping Centers (Abrasce).

A AVENIDA CAXANGÁ não é a maior da América Latina em linha reta da América Latina. Juiz de Fora (Minas Gerais) e Palmas (Tocantins) reivindicam o título. A Caxangá tem 6 quilômetros de extensão, mas a Avenida Teotônio Segurado, em Palmas, tem 14 quilômetros, sendo 12 em linha reta.

Em Pernambuco está o maior teatro ao ar livre do mundo, em FAZENDA NOVA. A cidade-teatro ocupa cerca de 100 mil metros quadrados. A cidade de Caruaru diz ter a maior feira ao ar livre do mundo, mas a cidade de Otavalo, no norte do Equador, também afirma que o título é dela. Não há dados comparativos oficiais entre as duas cidades.

O Recife tem o segundo maior POLO MÉDICO do país. A avaliação é feita pela Confederação Nacional de Saúde com critérios nem sempre objetivos. Leva em conta, além do número de atendimentos e leitos, os recursos tecnológicos.

O GALO DA MADRUGADA foi reconhecido na edição de 1995 do Guinness Book (o livro dos recordes) como o maior bloco de carnaval do mundo, com 1,5 milhão de pessoas. Em 2009 foram 2 milhões de foliões, segundo a diretoria. Os fundadores do bloco Cordão Bola Preta, do Rio de Janeiro, que no ano passado arrastou 1 milhão de pessoas, planejam ultrapassar o Galo em quatro ou cinco anos com a mudança do desfile para um lugar mais amplo.

*Artigo originalmente publicado na Revista Aurora, suplemento do Diario de Pernambuco
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